quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

POEMAS DO MILITANTE DA PALAVRA - CASSIANO RICARDO (1895- 1974)




Canto Incivil

Basta estar vivo
pra ser subversivo
( Ou subservivo.)
Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
( Ou vil, pra encurtar a palavra.)

Basta ser incivil
pra não ser ninguém
Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.

Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.

E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
e eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).

Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.

(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal.)

O exílio


E um velho de barba comprida
como um nostálgico profeta
foi posto num vapor e mandado pra longe...
(Um poeta passadista
diria logo: era um monge)
E esse velho era um poeta.

E esse velho levou um punhado de terra
da terra amorosa e quente
e foi tocando a sua lira longamente
na dor horizontal de um mar feito de pranto
todo listado de safira...

(Rufava o tambor da república
na praça pública)

A física do susto


O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.

POEMA ESCRITO NA PAREDE DO BAR 15



1
Ó dono do bar que possuis
um espelho maravilhoso.
Quanto queres por teu espelho?
Dou um poema por ele.

Numa balada, e não em prosa,
quero bem explicar meu ato.
Oferecer-te o meu retrato
numa moldura toda em rosa.

Como quem joga um limão verde
lá na torre do Belém,
meti uma bala na cabeça,
mas errei o alvo: Estou salvo.

Deu no cravo, deu na rosa,
deu num beija-flor vermelho,
deu também em teu espelho,
deu no peito do meu bem.

Ah, erra-se, sempre, o alvo
quando se vai, como eu o fiz,
pela cerração espessa,
apagar uma estrela infeliz.

Estrela que nunca se sabe
onde está oculta, se no espaço,
se na curva de um caminho,
se dentro de um copo de vinho,

se no céu, ou a que hora,
antes ou depois que anoiteça,
se no fundo de algum espelho,
ou em nossa cabeça.

2
Por esse espelho, quantas vezes
contemplaste, horas a fio,
como num horizonte frio,
o semblante dos teus fregueses!

Fregueses que o cristal da Boêmia
retratava, multiplicados
dentro das mil e uma noites
dos teus mil e um cuidados. Mas o teu grande, único ensejo,
foi aquele em que conseguiste
surpreender, através do espelho,
certo pobre homem triste.

No instante mesmo em que o vilão,
sem refletir — mas refletido —
pretendia esconder no bolso
um pedaço de pão.

Pão que colocas com amor
sobre cada mesa — ao centro —
como uma surpresa, dentro
de um vidro em formato de flor.

Ó dono do bar, que possuis
espelho tão maravilhoso,
sei que esse espelho policial
é o teu cão, teu cão de cristal.

Atento ao menor gesto ou ato
de quem ouse sair, de repente,
levando um pedaço de pão
pela porta resplandecente!

3
Perdoa-me o ato insensato.
Meti uma bala na cabeça,
mas errei o meu horizonte,
deu no cravo, deu na rosa,

deu nas garrafas, nos copos,
deu nas bandejas de prata,
e ainda, atravessando a sala
(como dirigi-la ou contê-la?),
deu no teu espelho defronte
que ficou com o sinal da bala
estilhaçado na fronte,
em forma de estrela.

Ó dono do bar que possuis
espelho tão maravilhoso
e de reflexos tão azuis,
quanto queres por teu espelho?
— Dou um poema por ele!


PECADO ORIGINAL


O dia nos espia... novamente.
Mas, ó incrível morena de olhar verde,
fecha os teus olhos pra fingir que é noite.
E teremos a noite, duas, três vezes,
quantas vezes fecharmos nossos olhos
na quentura de um beijo. Porque a noite
é uma pequena invenção de nós dois...
Há um momento de treva em cada beijo
e uma risada matinal depois,
do dia, debruçado na jane1a,
que nos espia, e quer saber de tudo
o que se passa agora entre nós dois.
Fecha os olhos de novo, e eu te darei
a noite que ainda mora atrás do dia

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