Zine Vertigem é um palco aberto perante os olhos curiosos de quem cheira arte e não se prende em preconceitos tolos. Rogério Skylab, músico carioca, com certeza é um dos bardos que tem em sua poesia o apelo intenso da arte insubmissa, a arte viva que explode poesia e isso ninguém pode negar. Dentro de um experimentalismo que funde cultura erudita e popular Rogério Tolomei Teixeira, seu nome de batismo, além de compor canções tem um livro de sonetos publicado em 2006 pela editora Rocco chamado Debaixo das rodas de um automóvel e um blog literário, o Godard City http://godardcity.blogspot.com/. Às vezes levado ao ridículo pela crítica reacionária, coloco algum de seus poemas que foram feitos pra ler e não cantar, alguns inclusive como Couve-flor e Curriculum Vitae saiu nesse belo livro:
MARGEM
Desde que me separei dos homens
e me trancafiei no quarto,
tenho escutado a vida.
Como se para escutá-la fosse preciso a margem.
Agora mesmo acabou a novela das oito.
O vizinho do lado está rindo.
Qual é o fato engraçado que o faz rir tanto ?
Será mesmo engraçado ?
Ou será ele um homem feliz ?
A criança chora. O cachorro late.
E o homem ri cada vez mais alto.
Será isso então a vida ?
Esse ruído infinito ?
Esse burburinho que não pára ?
UM CÉU DIÁFANO
Uma nuvem diáfana percorria o céu
seguida por muitas outras.
E eram tantas que pareciam ilhas
flutuantes a singrar mares.
Iam ao sabor dos ventos
até formar um continente,
cuja língua todos conheciam
e era um bálsamo para os ouvidos.
Assim ele ia divagando
enquanto a ambulância não vinha.
E já nem sentia suas pernas esmagadas
sobre o calor insuportável do asfalto.
Um pivete aproveitava para roubá-lo
e ele para mirar o céu diáfano.
O BEIJO DA MORTE
O beijo ali, exposto, nu.
Talvez a nos trazer alguma memória afetiva.
Um outro tempo vindo à tona.
Um beijo anacrônico, que gritava
mais alto que as buzinas de automóveis.
Um beijo em riste, ali.
No meio do passeio público.
Atrapalhando o trânsito dos pedestres.
O beijo insistia contra o olhar
apressado e ansioso
dos que ali passavam.
Obsceno.
Contra o ritmo da cidade.
O que fazer àquilo?
Era um apêndice.
Uma mis-en-cene.
Um corte.
E ninguém haveria de lhes chamar a atenção
porque não era crime.
Era um beijo.
Vermelho
como um sorvete é morango.
Eu via
o que saltava aos olhos
e atrevia.
O beijo na rua.
Como se fosse algo de muito antigo,
de priscas eras.
Agora mesmo,
em meio aos meus afazeres,
o beijo continua.
Úmido
entre as mucosas.
Forçando os músculos da face
e dando algum sentido
ao que me foge à lembrança.
A não ser que fosse
o beijo da morte.
SKYLAB
22/09/07
LAPA
Lapa das putas de ontem.
Cujos olhos são lanças
que correm na escuridão.
Lapa dos olhos que cegam.
Lapa também de hoje.
Dos automóveis que olham
e dos travestis que passam.
( Lapa das pernas, bundas e quadris
que nos arrebatam ).
Lapa de ontem e de hoje.
Dos olhos e das bundas.
Das putas e dos travestis desnudos.
A mesma Lapa de sempre.
Entre elas, um arco, um elo.
GABRIEL O PENSADOR
Contra a ameaça
de me ver transformado
em Gabriel O Pensador,
eu luto.
É uma luta sem tréguas
porque a gente sabe:
sempre existe um Gabriel O Pensador
na tua cola,
pronto pra te abocanhar.
Ao menor descuido,
ele te pega.
SKYLAB/dez 2008
ELA
O cu não é bunda,
o cu não é ânus.
Seu caminho é diferente:
sua geografia, outra.
O cu resiste a metáfora,
a analogia e a qualquer sentido
que o faça outro.
o cu é o cu é o cu é o cu...
Eco do eco,
nao seria nada se nao fosse ela
(pregas, dobras)
entre o céu e o inferno,
o cu e o ego.
EM EXTINÇÃO
Eu gosto de tudo
em extinção:
mico-dourado, urso panda,
boto da Amazônia.
O Homem também: em extinção.
A literatura
(a poesia principalmente).
Se estiver em extinção
é comigo mesmo.
Esse amor sem limites
por tudo que desaparece.
A vela que vai se apagando lentamente.
A língua portuguesa.
O nosso amor... desaparecendo lentamente.
A SETA DE SATÃ
Reta, ela avança, a seta
de satã, essa mesma
por quem guardei tantas esperanças.
Ela voa como se pudesse atingir o alvo.
E erra. Seu destino é esse.
Pra tanto esforço, nenhum êxito.
A seta de satã ressalta
o tempo perdido e a falta de sorte.
Lá vai ela, a toda.
Como uma bala perdida.
Um pedaço de poesia.
A seta de satã sabe,
no vôo que empreende,
o que é estar longe do alvo.
CURRICULUM VITAE
Não tenho curso de informática.
Não fiz estágio em lugar nenhum.
Não sou ligada à Internet.
Não tenho fax, nem micro.
Nome: esqueci.
Faculdade: abandonei.
Não dirijo, nem falo inglês,
se é que você me entende.
Experiência em ficar sentado no sofá
tirando meleca.
E de vez em quando escrever à mão
coisas de somenos importância.
Assim como esse curriculum.
Quem sabe um dia não sou aproveitado ?
COUVE-FLOR
Couve-flor, uma flor em si.
Ensimesmada, sem bouquet.
Que ninguém pudesse pôr na lapela.
Uma flor planejada.
Enfim, uma flor que alimentasse.
Flor-funcional. Inviolável.
Que não produzisse
volúpias como a flor do ópio.
Fosse isso suficiente.
Mas não é. Flor-bruta,
abrupta, que se abre como um cancro.
Flor amarela, flor-infecção.
Como o cu do meu amor.
Perversa e cheia de flocos.
TROMBETA
Assim como o fogo-fátuo
que faz da noite mais escura
uma noite de astros deslumbrantes.
Da luz fuosforescente
que ilumina a minha rua
e às vezes parece a lua cheia.
Ou quando tomo êxtase,
nas noites de solidão e desespero,
e danço a noite inteira
e faço amor contigo uma, duas, três vezes.
Por isso, meu amor, é que eu te digo:
trombeta pode ser o instrumento dos anjos;
mas pode também ser o chá,
através do qual eu os vejo tocando.
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