(Por Eduardo marinho)
Vi serem divididas comigo, quando andei no nível da mendicância, refeições paupérrimas. Fui abrigado no cantinho do casebre, dormi em capim fresco improvisado, sobre o chão batido. Ou pendurado nos caibros, em redes. Sob o teto precário de ruínas, casas abandonadas, construções, compartilhei comidas preparadas em latas quadradas de óleo, em fogueiras improvisadas. Em cidades, nos acostamentos e postos nas estradas. Fui hospedado em palafitas onde se ouve o barulho da merda batendo na água, quando se usa a “casinha”. Vi a parte abandonada dessa nossa humanidade, a parte enxotada dos benefícios da sociedade, escorraçada, roubada e ainda perseguida. E vi brotar na lama fétida, sobre a qual se construiu a estrutura social, o lírio lindo e perfumado da solidariedade, da generosidade, do altruísmo inacreditável que as dores implacáveis despertam. Eu não estava ali sofrendo por mim. Por mim, eu estava aprendendo avidamente, observando as vivências, ainda sem entender, mas sentindo, profundamente, o que nunca havia sentido. Sentindo o sentimento das pessoas, o sentimento dos lugares, o sentimento do mundo e da humanidade à qual pertenço. Absorvia os códigos, os valores, as fragilidades, os saberes e as sabedorias. Aprendi a admirar o heroísmo dos desprezados, aprendi a distingüir seu caráter, a individualizá-los. Reconheci enormes riquezas sob a capa da miséria. Sofri com as injustiças que nem os próprios miseráveis percebiam, embora as sofressem – e aprendi que era melhor esconder meu sofrimento. Os irmãos sacaneados são acusados por sua própria desgraça. As causas se esfumaçam no ar, com o controle do ensino e das comunicações, com o trabalho competente de publicitários, artistas, jornalistas, entre tantas profissões utilizadas contra a maioria, os povos, em favor de poucos.
Deve ser por isso que me causa tanto desconforto o uso, a presença, a proximidade ou a simples visão do luxo, da ostentação, de privilégios. Áreas privadas, seguranças, nobrezas, refinamentos, sofisticações, tudo passou a me parecer uma pantomima ridícula, primitiva, disfarces esfarrapados da nossa desumanidade, da indiferença que somos capazes, em nossa sede de privilégios e superioridades que denunciam a real inferioridade de espírito. Eu disse que me causa incômodo, não raiva. Meus sentimentos têm origem nas situações, não nas pessoas. Essas me causam uma certa tristeza, por inconscientes, por infantis, por superficiais, por iludidas.
Meu desconforto é moral, humano, pela ligação do luxo à miséria, pela inevitável relação do privilégio com a carência. Um sentimento que não se transfere às pessoas, mas às mentalidades, que não procura culpa, mas responsabilidades, nesta sociedade de miséria material e moral. Não é à toa a falta de sentido na vida da esmagadora maioria. Só os mais grosseiros podem se satisfazer com a abastança, com o usufruto, com o consumo. A insatisfação é clara.
Não espero encontrar meus sentimentos, pensamentos e opiniões em outras pessoas – embora, de raro em raro, aconteça. Se me desse ao trabalho e à arrogância de condenar valores e comportamentos dos quais discordo, viveria em conflitos pessoais, alimentaria sentimentos nocivos e desagradáveis e não teria tempo, nem espírito, para fazer os trabalhos que gosto e dão sentido à minha vida.
Não posso recomendar, nem pretendo voltar às situações de miséria material – onde, na verdade, nunca me senti, apesar dos anos e anos nestas situações. Mas não consigo ver valor no luxo, no excesso material, na ostentação e no desperdício. A ligação do valor material ao valor pessoal é de um primitivismo constrangedor. Expressões de insensibilidade, de sub-humanidade.
Fui considerado um cara estranho, incômodo ou simplesmente um chato, principalmente dos 15 aos 19 anos, no meio social de classe média-alta, onde nasci e vivi. Muitas vezes pensei que eu deveria ter alguma coisa errada, por ter vergonha do que os demais ostentavam com orgulho. Por questionar sentimentos de superioridade e tratamentos grosseiros contra serviçais e pobres em geral. Eu causava estranheza e me sentia estranho. Hoje, posso entender tranqüilamente e me dar razão, na minha pouca idade, com a vivência que hoje completa o 50º ano desse curso de vida. Entendo e me congratulo comigo mesmo quando, aos 19, depois de ter sido militar, bancário, estudante, mergulhador, vendedor, entre outras coisas, decidi “dedicar minha vida a refletir e causar reflexão, questionar valores vigentes e desenvolver meus próprios valores”, numa sociedade em que se fabricam, se impõem e se repetem pensamentos de laboratórios, para que ela seja como é. E saí pelo mundo, para experimentar o que era não ter nada e procurar o sentido de uma vida que, até então, não me parecia ter nenhum sentido. Mochila murcha nas costas, sem dinheiro nem paradeiro, sem parentes além da humanidade inteira.
Niterói, 26 de dezembro de 2010
Deve ser por isso que me causa tanto desconforto o uso, a presença, a proximidade ou a simples visão do luxo, da ostentação, de privilégios. Áreas privadas, seguranças, nobrezas, refinamentos, sofisticações, tudo passou a me parecer uma pantomima ridícula, primitiva, disfarces esfarrapados da nossa desumanidade, da indiferença que somos capazes, em nossa sede de privilégios e superioridades que denunciam a real inferioridade de espírito. Eu disse que me causa incômodo, não raiva. Meus sentimentos têm origem nas situações, não nas pessoas. Essas me causam uma certa tristeza, por inconscientes, por infantis, por superficiais, por iludidas.
Meu desconforto é moral, humano, pela ligação do luxo à miséria, pela inevitável relação do privilégio com a carência. Um sentimento que não se transfere às pessoas, mas às mentalidades, que não procura culpa, mas responsabilidades, nesta sociedade de miséria material e moral. Não é à toa a falta de sentido na vida da esmagadora maioria. Só os mais grosseiros podem se satisfazer com a abastança, com o usufruto, com o consumo. A insatisfação é clara.
Não espero encontrar meus sentimentos, pensamentos e opiniões em outras pessoas – embora, de raro em raro, aconteça. Se me desse ao trabalho e à arrogância de condenar valores e comportamentos dos quais discordo, viveria em conflitos pessoais, alimentaria sentimentos nocivos e desagradáveis e não teria tempo, nem espírito, para fazer os trabalhos que gosto e dão sentido à minha vida.
Não posso recomendar, nem pretendo voltar às situações de miséria material – onde, na verdade, nunca me senti, apesar dos anos e anos nestas situações. Mas não consigo ver valor no luxo, no excesso material, na ostentação e no desperdício. A ligação do valor material ao valor pessoal é de um primitivismo constrangedor. Expressões de insensibilidade, de sub-humanidade.
Fui considerado um cara estranho, incômodo ou simplesmente um chato, principalmente dos 15 aos 19 anos, no meio social de classe média-alta, onde nasci e vivi. Muitas vezes pensei que eu deveria ter alguma coisa errada, por ter vergonha do que os demais ostentavam com orgulho. Por questionar sentimentos de superioridade e tratamentos grosseiros contra serviçais e pobres em geral. Eu causava estranheza e me sentia estranho. Hoje, posso entender tranqüilamente e me dar razão, na minha pouca idade, com a vivência que hoje completa o 50º ano desse curso de vida. Entendo e me congratulo comigo mesmo quando, aos 19, depois de ter sido militar, bancário, estudante, mergulhador, vendedor, entre outras coisas, decidi “dedicar minha vida a refletir e causar reflexão, questionar valores vigentes e desenvolver meus próprios valores”, numa sociedade em que se fabricam, se impõem e se repetem pensamentos de laboratórios, para que ela seja como é. E saí pelo mundo, para experimentar o que era não ter nada e procurar o sentido de uma vida que, até então, não me parecia ter nenhum sentido. Mochila murcha nas costas, sem dinheiro nem paradeiro, sem parentes além da humanidade inteira.
Niterói, 26 de dezembro de 2010
Salve, Marinho
ResponderExcluirTamo na área